Saudações:

Em homenagem e reverência profunda à minha Mestra de Ordenação e Treinamento, Venerável Shingetsu Coen Osho.
Que seu Corpo-Dharma, seja como um diamante inquebrantável.
Que tenha próspera longevidade e saúde ilimitada.
Que nenhum mal a atinja.
Que todos os seus esforços sejam recompensados.

sábado, 1 de outubro de 2011

Diálogo da Árvore e da Pedra



Extraído do livro Musashi, de Eiji Yoshikawa, romance épico baseado diretamente na história japonesa, que narra um período da vida do mais famoso samurai de todos os tempos. Trata-se de um diálogo, entre o monge Zen Takuan e Musashi quando ainda era um aprendiz de samurai. Esse dialógo foi travado quando o monge consegui prender Musashi numa árvore.

A noite vinha chegando. Contrastando com a anterior, a lua brilhava branca no céu sem nuvens. Quando todos no templo se aquietaram adormecidos, o monge, cansado dos livros, calçou as sandálias e saiu.

-Takezo! - chamou. Um leve frêmito agitou os ramos, no topo do velho cedro. Gotas de sereno caíram ao seu redor formando uma chuva tênue e brilhante.

- Pobrezinho, já nem tem forças para responder. Takezo, ei, Takezo! Na mesma hora, um berro possante se fez ouvir:

- Que quer, monge dos infernos? - Era a voz estrondosa de Takezo, cujo ânimo nada lograva abater.

- Ora, ora ... - disse o monge, elevando uma vez mais o olhar. Vejo que ainda não perdeu a voz. Nesse passo, creio que é capaz de durar mais cinco ou seis dias. E então? Está com fome, Takezo?

- Não me faça perder tempo com conversa fiada, bonzo. Ande logo, corte minha cabeça de um vez!

- Nada feito, não ouso cortá-la descuidadamente. Do jeito como você é atrevido, sua cabeça é capaz de pular e morder meu pescoço, mesmo depois de separada do corpo. Bem, vamos apreciar o luar.

Takuan sentou-se sobre um pedra próxima.

- Espere aí que já lhe mostro ... Concentrando toda a força do corpo, Takezo pôs-se a sacudir o galho em que se achava amarrado. Folhas e fragmentos de casca choveram sobre o rosto de Takuan. O monge os removeu, limpou os ombros e o peito, e voltou uma vez mais o rosto para o alto:

- Isso, assim é que se faz, gostei de ver! É preciso sentir raiva, muita raiva para que realmente venham à tona a verdadeira força e o caráter de uma pessoa. Nestes últimos tempos, anda na moda rotular de intelectual e magnânimo o indivíduo imperturbável, que oculta sua raiva. Que jovens se ponham a imitar tal atitude, supostamente adulta, constitui indizível absurdo. Gente jovem não deve conter a raiva. Tem de expô-la! Vamos, ranja os dentes, sinta raiva, muita raiva, Takezo!

- Ah, não perde por esperar, bonzo maldito! Eu ainda vou conseguir desgastar essas cordas e rompê-las, e então aterrisarei ao seu lado e o materei a pontapés!

- Palavras promissoras! Sinto-me orgulhoso! Até que isso aconteça, aqui permanecerei, à espera. Contudo, pense bem: até quando será capaz de agüentar? Sua vida não se terá acabado muito antes de a corda arrebentar?

- Como é?

- Céus, que força impressionante! Você está conseguindo balançar até a árvore! Mas veja a terra: nem se abala, reparou? Sabe por quê? Porque não há força em seu ódio - seu ódio é pequeno, é privado, tem origem em rancores pessoais. A indignação de um homem deve ser desprovida de interesses pessoais, devotada à causa pública. Encolerizar-se levado por mesquinhas emoções pessoais é histeria feminina.

- Continue tagarelando à vontade; já vai ver o que lhe acontecerá!

- Não adianta, Takezo, desista! Desse jeito, só vai conseguir consar-se. Por mais que se debata, nunca conseguirá abalar a terra - nem sequer partir esse galho.

- Maldição!

- Se empregasse toda essa energia a favor, já não diria da pátria, mas ao menos de terceiros, você conseguiria mover céus e terra, até mesmo os deuses, sem falar nos simples mortais! Nesse ponto, Takuan passou a usar o tom que empregava em seus sermões:

- É lamentável, lamentável! Nasceu de humanos, e no entanto é uma fera: e selvagem como uma fera, sem progredir um passo sequer em direção à condição humana, este jovem tão formoso está condenado a terminar seus dias.

- Cale a boca! - gritou Takezo. Lançou na direção do monge uma cusparada que se pulverizou antes de atingir o solo.

- Agora escute, Takezo, preste atenção: sua força física tornou-o bastante presunçoso, não é verdade? Acreditava não haver no mundo ninguém mais forte que você, estou certo ou não? E agora, que tem a dizer do seu atual estado?

- Você não me derrotou pela força: nada tenho de que me envergonhar.

- Não importa se fiz uso de expedientes ou de palavras, o fato é que o derrotei. Prova disso é que, por mais que se mortifique, aqui estou sentado numa pedra como vencedor e você exibe sua triste figura, dependurado num galho de árvore. Tem idéia do que provocou esta situação?

- ...

- Se considerarmos apenas a força física, você é mais forte do que eu, tem toda a razão. Um homem não pode lutar com as mãos limpas contra um tigre, é claro. Mas um tigre é sempre um tigre, um animal inferior ao homem, não se esqueça.

- ...

- O mesmo se dá com a sua coragem: todas as suas ações, até agora, demonstraram temeridade, uma falsa coragem que deriva da ignorância. Não são atos de um ser humano, nada têm a ver com a verdadeira força de um bushi. O homem, o verdadeiro bravo, teme o que tem de ser temido, poupa e resguarda a vida - esta pérola preciosa - e procura morrer por uma causa digna. Percebe agora o que há de tão lamentável em tudo isso? Você veio ao mundo possuindo força física e firmeza de caráter, mas é inculto - aprendeu apenas o lado sombrio da arte guerreira, não procurou cultivar a sabedoria e a virtude. "Aperfeiçoar-se no duplo caminho das letras e das armas" - conhece a expressão? Mas que significa "duplo caminho"? Sem dúvida não significa que dois são os caminhos a serem percorridos em busca do aperfeiçoamento; significa, isto sim, que os dois caminhos, das letras e das armas, estão juntos e perfazem um único caminho. Compreendeu, Takezo? Calou-se a voz sobre a pedra, nada mais disse o vulto sob a árvore. A noite permaneceu negra e serena. Por instantes, reinou o silêncio.

Eiji Yoshikawa


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