À NOITE
Chega em casa, cansado da labuta, da faina diária, encontra-se com a família, beija a mulher que mal levanta os olhos das unhas a serem aparadas, beija o filho, que por um instante esboça um leve esgar de satisfação, logo obscurecido pelo ribombar dos socos e chutes do “Dragobol Z” que ele assiste na tv a cabo. Quantos não repetem diariamente esses gestos sem emoção, quantos atos efetuados apenas por costume.
Alheio ao burburinho exterior, como é costume queda-se silencioso, em paz no lugar onde os mundos não se distanciam. Está só, sempre esteve, sozinho em meio as imensas forças do cotidiano que neste momento se calam e se aquietam no interior de si mesmo.
Algumas marcas invisíveis ainda doem do esforço do dia, ele observa seu corpo sem muito interesse, não consegue perceber as muitas marcas tatuadas pelas agruras de viver, a não ser aquelas relativas ao tempo. Sente a dor, aquela que não dói, que não marca, que não deixa seqüelas visíveis.
Ri da não mais tão estranha dimensão do sofrimento humano. Sorri, um sorriso amarelo pelo tempo perdido em que ainda não enxergava, mas percebe claramente que a dor ainda reverbera, que ainda ressoa, e se queda espantado pelos traços ainda não totalmente apagados do medo, do cansaço, da desesperança e da sensação de solidão e escuro. Como uma criança assustada pelos terrores da longa e escura noite, senta-se na almofada de meditação.
Ao longo do meditar... lembra-se daquele que há tantos meses trabalha sem receber salário, daquele que se esforça para entender o que não faz sentido, daquele que ganha muito para fazer pouco, daquela que tem que se virar em duas para poder criar os filhos e praticar, de outra ainda um pouco confusa, um pouco perturbada em meio a escolhas incorretas efetuadas na vida, de outro ainda que quase se afoga em meio a tantos rituais e sistemas que criou para se sentir seguro. Lembra de tantos que passaram, que estão passando, afinal tudo é como uma repetição quase enfadonha, uma estrofe repetida dia-a-dia, ano após ano. Ainda escuto o recitar de alguém efetuado sem muita convicção, sem muita segurança, como que preocupada com que pensarão, caso ela erre. E daí se errar, afinal para que uns se aprovem outros devem ser reprovados. Percebo a sensibilidade começando a ser manifestar, pela retirada dos destroços, pelo apaziguar dos apegos, pelo amenizar dos desejos.
Conhece o caminho. Sentado sem pressa, sem medo, sem incômodo. Conhece o caminho, já passou por ele, lembra-se ainda dos percalços da estrada, dos buracos, das armadilhas, das imagens transbordantes, muitas vezes também escutou os lamentos, também deu o gripo que ficou parado no ar.
Recorda-se da imagem do altar, e pensa que talvez não devesse existir esse altar, um altar, qualquer altar, mas abre a metáfora de “depois” tão incômodo, virulento e inconstante, que é melhor remetê-lo para um simples e verdadeiro aqui-e-agora... Tem a mais absoluta certeza de que somente agora haverá descanso, paz. Para que descansar do longo dia, por que precisa adormecer, por que desligar-se, não precisa, a meditação por si só é bastante suficiente.
Permanece em silêncio, os gritos fantásticos de outrora já não lhe rondam a mente, não mais escuta o gemer oriundo do vale de lágrimas da civilização perdida de si mesmo.
Permanece em silêncio, pensa no apocalipse possível pelo acúmulo da dor e da infelicidade das vidas esmagadas pela desesperança e pela ilusão.
Lentamente respira, profundamente aspira com o seu inspirar todo o universo. Sereno ele busca, no único lugar onde sabe poder encontrar, procura no centro do “agora” a “luz”. Seus olhos vagueiam despreocupados pela parede marcada com as mãos e pés de seu filho bagunceiro. Percebe os intuitos egocêntricos, relaxa na sua imóvel solidão por todos acompanhada, respira em paz e se identifica com a dor de todos, ainda se lembra da angústia de existir em um mundo onde as escolhas a que somos obrigados a fazer nos jogam dentro do caldeirão onde estão misturados em doses abundantes a ganância, a raiva e a ignorância.
Respira... Quieto em si... Renova seu voluntário sacerdócio, seus votos de ensinar o verdadeiro caminho para a comunidade que acompanha, para aqueles que buscam... Tenta se lembrar em como chegou até este ponto, sofrendo, doído, trôpego, ferido... (até rimou) das chagas abertas, das dúvidas, da sensação de ter sido continuamente vencido, da humildade aprendida em meio as sucessivas falhas. Dos erros, dos castigos ou o medo de sofrê-los... Dos limites atuais de suas ações, do tatear, do buscar novas maneiras, novos métodos, da percepção aguda dos limites que o cercam. Como é natural, também se lembra dos sucessos, das vidas que desabrocham em um cântico de louvor a si mesmas... Da expressão de beatitude resgatada, da alegria e da felicidade manifestada.
Lembra de muitos colegas, materialistas de carteirinha, perdidos e aprisionados em suas irreais construções mentais, alheios inteiramente à verdade que bate em suas portas, que se encontra na frente de seus narizes empertigados e empoados de tanta arrogância, de tamanha prepotência e enorme estupidez, alheios inteiramente de si mesmos e de suas enormes possibilidades.
Terminando sua meditação noturna o homem olha o ilusório mundo formado pelos erros repetidos incansavelmente pelos imbecis, pelos idiotas, pelos fanáticos religiosos, pelos preconceituosos de plantão semi-ocultos nas esquinas e escadas da vida, pela vã tentativa de nos sentirmos diversos dos desfavorecidos, dos habitantes dos guetos, dos diferentes, dos opostos. Relembra-se do medo que tinha do mal, do profundo mal subjacente ao gênero humano, da latente destrutividade, das veladas e temíveis intenções escondidas no recôndido do coração dos homens.
Finaliza a sessão, respira profundamente, calmo, renovado... só, mas totalmente unido a todos.
Balança-se de um lado para o outro, desfaz a postura, levanta-se, efetua uma leve mesura para a querida almofada que sempre o recebe tão carinhosamente.
Em seus lábios há um que de abandono infantil.
Amanhã... me esforçarei mais...
O amanhã não existe... me esforçarei hoje.
Alheio ao burburinho exterior, como é costume queda-se silencioso, em paz no lugar onde os mundos não se distanciam. Está só, sempre esteve, sozinho em meio as imensas forças do cotidiano que neste momento se calam e se aquietam no interior de si mesmo.
Algumas marcas invisíveis ainda doem do esforço do dia, ele observa seu corpo sem muito interesse, não consegue perceber as muitas marcas tatuadas pelas agruras de viver, a não ser aquelas relativas ao tempo. Sente a dor, aquela que não dói, que não marca, que não deixa seqüelas visíveis.
Ri da não mais tão estranha dimensão do sofrimento humano. Sorri, um sorriso amarelo pelo tempo perdido em que ainda não enxergava, mas percebe claramente que a dor ainda reverbera, que ainda ressoa, e se queda espantado pelos traços ainda não totalmente apagados do medo, do cansaço, da desesperança e da sensação de solidão e escuro. Como uma criança assustada pelos terrores da longa e escura noite, senta-se na almofada de meditação.
Ao longo do meditar... lembra-se daquele que há tantos meses trabalha sem receber salário, daquele que se esforça para entender o que não faz sentido, daquele que ganha muito para fazer pouco, daquela que tem que se virar em duas para poder criar os filhos e praticar, de outra ainda um pouco confusa, um pouco perturbada em meio a escolhas incorretas efetuadas na vida, de outro ainda que quase se afoga em meio a tantos rituais e sistemas que criou para se sentir seguro. Lembra de tantos que passaram, que estão passando, afinal tudo é como uma repetição quase enfadonha, uma estrofe repetida dia-a-dia, ano após ano. Ainda escuto o recitar de alguém efetuado sem muita convicção, sem muita segurança, como que preocupada com que pensarão, caso ela erre. E daí se errar, afinal para que uns se aprovem outros devem ser reprovados. Percebo a sensibilidade começando a ser manifestar, pela retirada dos destroços, pelo apaziguar dos apegos, pelo amenizar dos desejos.
Conhece o caminho. Sentado sem pressa, sem medo, sem incômodo. Conhece o caminho, já passou por ele, lembra-se ainda dos percalços da estrada, dos buracos, das armadilhas, das imagens transbordantes, muitas vezes também escutou os lamentos, também deu o gripo que ficou parado no ar.
Recorda-se da imagem do altar, e pensa que talvez não devesse existir esse altar, um altar, qualquer altar, mas abre a metáfora de “depois” tão incômodo, virulento e inconstante, que é melhor remetê-lo para um simples e verdadeiro aqui-e-agora... Tem a mais absoluta certeza de que somente agora haverá descanso, paz. Para que descansar do longo dia, por que precisa adormecer, por que desligar-se, não precisa, a meditação por si só é bastante suficiente.
Permanece em silêncio, os gritos fantásticos de outrora já não lhe rondam a mente, não mais escuta o gemer oriundo do vale de lágrimas da civilização perdida de si mesmo.
Permanece em silêncio, pensa no apocalipse possível pelo acúmulo da dor e da infelicidade das vidas esmagadas pela desesperança e pela ilusão.
Lentamente respira, profundamente aspira com o seu inspirar todo o universo. Sereno ele busca, no único lugar onde sabe poder encontrar, procura no centro do “agora” a “luz”. Seus olhos vagueiam despreocupados pela parede marcada com as mãos e pés de seu filho bagunceiro. Percebe os intuitos egocêntricos, relaxa na sua imóvel solidão por todos acompanhada, respira em paz e se identifica com a dor de todos, ainda se lembra da angústia de existir em um mundo onde as escolhas a que somos obrigados a fazer nos jogam dentro do caldeirão onde estão misturados em doses abundantes a ganância, a raiva e a ignorância.
Respira... Quieto em si... Renova seu voluntário sacerdócio, seus votos de ensinar o verdadeiro caminho para a comunidade que acompanha, para aqueles que buscam... Tenta se lembrar em como chegou até este ponto, sofrendo, doído, trôpego, ferido... (até rimou) das chagas abertas, das dúvidas, da sensação de ter sido continuamente vencido, da humildade aprendida em meio as sucessivas falhas. Dos erros, dos castigos ou o medo de sofrê-los... Dos limites atuais de suas ações, do tatear, do buscar novas maneiras, novos métodos, da percepção aguda dos limites que o cercam. Como é natural, também se lembra dos sucessos, das vidas que desabrocham em um cântico de louvor a si mesmas... Da expressão de beatitude resgatada, da alegria e da felicidade manifestada.
Lembra de muitos colegas, materialistas de carteirinha, perdidos e aprisionados em suas irreais construções mentais, alheios inteiramente à verdade que bate em suas portas, que se encontra na frente de seus narizes empertigados e empoados de tanta arrogância, de tamanha prepotência e enorme estupidez, alheios inteiramente de si mesmos e de suas enormes possibilidades.
Terminando sua meditação noturna o homem olha o ilusório mundo formado pelos erros repetidos incansavelmente pelos imbecis, pelos idiotas, pelos fanáticos religiosos, pelos preconceituosos de plantão semi-ocultos nas esquinas e escadas da vida, pela vã tentativa de nos sentirmos diversos dos desfavorecidos, dos habitantes dos guetos, dos diferentes, dos opostos. Relembra-se do medo que tinha do mal, do profundo mal subjacente ao gênero humano, da latente destrutividade, das veladas e temíveis intenções escondidas no recôndido do coração dos homens.
Finaliza a sessão, respira profundamente, calmo, renovado... só, mas totalmente unido a todos.
Balança-se de um lado para o outro, desfaz a postura, levanta-se, efetua uma leve mesura para a querida almofada que sempre o recebe tão carinhosamente.
Em seus lábios há um que de abandono infantil.
Amanhã... me esforçarei mais...
O amanhã não existe... me esforçarei hoje.
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