por Getúlio
Taigen
Palestra proferida por Getulio Taigen na PUC durante uma
conferência inter-religiosa.
Boa tarde a todos.
Eu me chamo Getúlio Taigen. Sou discípulo da Monja Coen –
Primaz fundadora da Comunidade Zen Budista – ZendoBrasil e Missionária do Japão
para a divulgação do Zen Budismo da Escola Soto no Brasil. Sou o responsável
pelo San Zen Dojo – Centro Rio Zen Budista da Ilha do Governador que é a filial do Rio de Janeiro.
É motivo de grande satisfação o fato de poder estar aqui neste
dia fazendo parte dessa mesa tão ilustre, por duas simples razões: a primeira é
o privilégio de poder estar sentado ao lado da minha professora Monja Coen e a segunda é
compartilhar da possibilidade de através de minhas singelas palavras trazer um
pouco de alívio e alegria aos que nos ouvem.
Inicialmente para podermos falar de Compaixão, que é a maior
tônica do Budha e do Dalai Lama, precisamos compreender um pouco como o Budismo
entende as relações entre os seres e os objetos visíveis e não visíveis.
Tudo o que é visto através dos olhos, sentido através do tato,
provado através da gustação, escutado através da audição e cheirado através do
nariz é, tão logo se estabeleça o contato, rotulado como agradável, desagradável
ou indiferente a isso o budismo dá o nome de Sensação, sendo considerado como o
segundo agregado (o primeiro agregado é a matéria, ou seja, os objetos do mundo
exterior).
O terceiro agregado são as Percepções, que do mesmo modo que as
sensações, são produzidas mediante o contato de nossas faculdades com o mundo
exterior. Por essa percepção é que reconhecemos pelo tipo e características, os
objetos físicos e mentais.
O quarto agregado são as Formações Mentais, que
formam os outros elementos condicionando a consciência, é uma condição
necessária sem a qual o conhecimento ou consciência não vêm a existência.
O
quinto agregado é a Consciência ou conhecimento, reação ou resposta às
faculdades (visual, auditiva, olfativa, gustativa, tátil e mental). A
consciência vem à tona quando uma das faculdades estabelece contato. Ex: Se
existe algo para ser visto, luz suficiente e olhos para ver, produz-se
imediatamente a consciência visual.
Todos esses agregados (matéria, sensação, percepção, formação
mental e consciência) são inseparáveis, ou seja: ao olharmos uma comida também
sentimos o seu cheiro; ao andarmos em um bosque de flores, sentimos o seu
perfume e podemos tocar as flores. Ha uma interdependência entre todas as
coisas, pois tudo o que existe é efeito de uma causa anterior e, por sua vez
causa de um efeito posterior. Compreendendo assim a impermanência de tudo, a
compreensão do mundo como um todo aparece clara e nítida. Tudo e todos são
interdependentes.
Para melhor ilustrar o assunto, vou contar uma historinha
budista. A historinha é importante por que sua moral nos ajuda a entender como
se processa o inter-relacionamento de tudo e de todos. A historinha chama-se "A
ratoeira".
"O ratinho estava olhando pelo buraquinho da parede e aí
percebeu que os donos da casa tinham comprado uma caixa grande. Ficou muito
curioso e pensou: - O que será que tem ali de bom para eu comer? Quando olhou
mais atentamente, notou que o embrulho continha uma ratoeira.
O ratinho ficou
preocupado, afinal uma ratoeira é para pegar ratos e eu sou um rato... Ato
contínuo saiu correndo e no caminho encontrou com a galinha e, apressado falou
para ela: - Nós estamos correndo um sério risco! Os donos da casa compraram uma
ratoeira.
Como é que vamos resolver esse problema? A galinha respondeu: - Eu não
vejo nenhum problema para mim. Eu nunca vi ninguém pegar galinhas com ratoeira.
O sr. é quem deve estar um pouco preocupado, até porque eu não fico lá dentro da
casa comendo a comida deles, nem fico me esgueirando pelos cantos. Eu sou uma
pessoa importante nesta casa, eu dou ovos diariamente e assim falando saiu toda
imponente ciscando chão.
O rato viu que não tinha jeito de convence-la e, saiu
correndo em desabalada carreira. Correu, correu e encontrou-se com o porco.
Quase sem fôlego falou: - Olha, o problema é bastante sério, compraram uma
ratoeira! O que é que a gente vai fazer?!... A galinha nem ligou... O porco
pensou um pouco e depois respondeu: - Meu amigo, o que é que eu tenho com isso,
eu fico quase o dia todo preso no cercado! Além do mais o porco é dentro do
reino animal um bicho importante, eu sou quase que reverenciado! Eles precisam
de mim, não vê como sou bem alimentado.
E ninguém pega porco com uma ratoeira...
O Sr. é que deve estar preocupado. Vou fazer o seguinte. Sempre que eu rezar vou
pedir por você, orando que sua morte seja rápida... Desesperado o rato continuou
correndo e encontrou-se com a vaca que descansava debaixo de uma árvore
frondosa, chegou perto dela mais cauteloso e falou: - Sra vaca, compraram uma
ratoeira!
A fazenda toda corre risco! Eu falei para a galinha, a galinha nem
ligou. O porco riu de mim... E quanto a você, pretende fazer o que? Respondeu a
vaca: - Eu??? E eu tenho alguma coisa a ver com uma ratoeira? Eu nunca ouvi
falar na minha vida que uma vaca tenha sofrido algum tipo de constrangimento por
uma ratoeira! Eu acho que o preocupado aqui é você... Eu não tenho nada com
isso! Se eu fosse você corria e me escondia.
Onde já se viu uma vaca ter medo de
uma ratoeira, logo o bicho mais importante do reino animal. E o rato, então,
preocupado, sem ninguém para ajudar, se escondeu num cantinho lá e ficou quieto.
Nesta noite ouviu-se um grande barulho.
A ratoeira tinha pego
alguma coisa... Os donos da casa se levantaram, A senhora foi rápido no escuro
para pegar o que havia sido preso na ratoeira. A ratoeira havia pego uma cobra
pelo rabo, era uma cobra muito venenosa, e o bicho estava vivinho da silva. A
cobra picou a mão da senhora. E ela começou a ficar muito doente, co muita
febre, seu marido, preocupado porque ela estava com muita febre, mandou matar a
galinha e fazer uma boa canja.
Uma canja bem grossa é ótima quando a pessoa está
com febre. Mas a senhora não melhorava e teve que ser hospitalizada. Ficou no
hospital durante uma semana.
Vários parentes e amigos começaram para visitá-la.
O marido sem saber como alimentar toda aquela gente que não parava de chegar,
mandou matar o porco. Infelizmente, após uma semana senhora veio a falecer. A
despesa com o enterro foi muito custosa, o marido teve que mandar matar a vaca e
vender todos os pedaços para fazer jus aos compromissos assumidos com o
falecimento.
Então, a pergunta que devemos nos fazer é: - Até quando vamos
achar que aquele acontecimento ou aquela pessoa não tem nada a ver com a gente,
não tem nenhum parentesco, não tem nenhum elo, não tem nenhuma proximidade?.
Será que não percebemos que tudo e todos são totalmente interdependentes. Então,
quando alguém comprar uma ratoeira prestem muita atenção... Pode acabar
interferindo na sua vida!
Trata-se de um imenso erro rotularmos as coisas com as quais
estabelecemos contato, como isso me satisfaz e aquilo não me satisfaz, aquilo lá
me é indiferente e eu largo para lá! Na verdade não é. Somos todos animados pela
mesma energia, bebemos a mesma água, comemos a mesma comida, respiramos o mesmo
ar. Nascemos da mesma maneira. Somos iguais!.Apenas manifestamos fisicamente
diferenças.
Vamos imaginar todos os seres como sendo parte de uma gambiarra
de festa junina, e que nesta gambiarra estivessem presas várias lâmpadas, umas
coloridas, outras maiores, umas com mais luz, outras com menos, umas amarelas,
outras azuis, vermelhas etc., mas todas animadas pela mesma energia, pela mesma
mente cósmica. E que esta energia, essa mente é a responsável pela nossa
animação. Uma lâmpada fica amarela, outra verde, outra mais forte, uma pequena,
outra grande, mas todas animadas pela mesma energia.
Somos todos interdependentes. Não podemos nos dar ao luxo de
fazer separações. A separação produz sofrimentos para todos os seres.
Agora que entendemos um pouco mais sobre o fato de que somos
todos irmãos, vamos falar de compaixão.
Compaixão... Se separarmos as palavras, fica "com" e
"paixão", nos passando a idéia de que devemos que ter "paixão"... em
todos os nossos atos. A paixão é um amor desmedido, sem barreiras e sem
obstáculos. Cada coisa, cada ato, cada palavra, cada pensamento deve vir
recheado de uma grande amor, deve ser vivenciado "com...paixão" .
Ao perceber que estamos fazendo algo errado, algo incorreto e,
sempre percebemos o erro, pois esta percepção é inata, no fundo a gente sabe o
que é certo e o que é errado, nascemos com esse princípio, sabemos a diferença.
Temos que nos lembrar de que ao fazer algo "com... paixão" esse ato é
naturalmente certo. Entretanto este ato deve ser feito descompromissadamente,
sem interesse, sem estimativa de retorno de qualquer espécie. Em japonês isso se
chama ishinryo mushotoku.
O ato deve ser feito, porque é o certo a ser
feito naquele momento, não porque se deseja um retorno ou alguma vantagem
decorrente do ato praticado.
Tem uma outra historinha budista em que dois monges
celibatários, um mestre e seu aluno, ambos vinham andando pela rua. Eles tinham
feito votos de celibato, chovia muito e no caminho que eles percorriam havia se
formado uma grande poça de água que dificultava as pessoas de passarem.
Uma
jovem se encontrava com grande dificuldade em atravessar por causa de suas
roupas. O Mestre percebendo o problema da moça com muita gentileza pegou-a no
colo, atravessou a poça, desceu a moça do outro lado e foi embora sem dizer uma
só palavra. O aluno ficou com os olhos arregalados do tamanho de um pires e
durante o dia inteiro olhou para o mestre com um semblante preocupado. Chegando
a noite, o aluno não agüentou mais e perguntou: - Mestre, o Sr. não disse que a
gente não deve ter contato com as mulheres para manter o celibato? O senhor
pegou de manhã uma moça no colo. Aí o mestre falou: - Mas eu já larguei essa
moça há horas atrás, você é que continua segurando-a. No exato momento em que a
coloquei no chão eu a larguei, você é que mantém a moça no seu pensamento...
A ação desinteressada, fazer o que é certo no momento certo,
ter compaixão, ajudar os outros, colaborar para que as pessoas possam fazer
brilhar a luz interna que tem dentro delas, ajudando a dissipar as trevas da
ilusão e da ignorância, porque esses são os venenos que nos poluem e nos
estragam, produzindo muito sofrimento, agindo assim não causamos nem produzimos
sofrimento e, também não estamos causando o sofrimento das pessoas que nos
rodeiam.
Através da ganância também produzimos dor, angústia e mais
sofrimento, ganância é sempre querer alguma coisa mais, nunca estar satisfeito
com o que se possui.
Na verdade somos gananciosos, porque não reconhecemos que
as coisas são impermanentes, que se modificam, se alteram, se transformam. E se
são impermanentes, naturalmente que são insatisfatórias.
A mesma taça de
chocolate de agora, daqui a meia hora tem um sabor diferente. A mesma pessoa não
pode tomar banho no mesmo rio duas vezes, porque a água que o molhou não é mais
a mesma, e a pessoa que tomou o primeiro banho também já se modificou.
Temos que repensar a nossa maneira de viver. A maneira melhor
de mudar a vida é mudar a nós mesmos. É começar a nos transformarmos naquilo
sabemos ser o certo.
Se consideramos incorreto falar alto, falemos baixo. Se
acharmos que falar palavrão não é bom, não vamos falar mais. Não precisa chamar
atenção daqueles que procedem errado, apenas proceda certo... E esse seu
"não-fazer", automaticamente começa a influenciar as pessoas que estão bem perto
de você.
Elas começam a perceber: - Mas por que será que ele é assim? Ele é
muito tranquilo é um "cara" calmo, pausado, acha a vida boa, não acontece
muita coisa errada com ele.
Vou começar a prestar mais atenção nele. Ah! ele fica perambulando perdido pela rua, não tem más companhias
como amigos. É ele tem uma vida correta... Vou tentar fazer o mesmo! Talvez por
isso ele seja tão simpático e educado.
Com tua postura, com teu exemplo você vai agindo na formação
daqueles que te rodeiam. Afinal, como é que ensinamos aos nossos filhos? Não
ensinamos falando, gritando, batendo ou colocando de castigo, ensinamos pelo
exemplo, pela postura e pela maneira de ser. É de conhecimento público que as
crianças aprendem a fumar nos vendo fumando. Eles aprendem a beber nos vendo
bebendo. Eles falam palavrão, porque nos escutam falar palavrões. Se tivermos
uma melhor postura, eles passam a ter um bom exemplo a seguir, uma referência
correta.
É necessário um grande esforço em ter uma vida correta, pautada
em sentimentos corretos, atitudes corretas e pensamentos corretos, afastando a
ganância, que é a vontade de sempre querer mais; a raiva, de não poder ter ou
ser o que se deseja, e a ignorância, que é o desconhecimento de tudo isso.
Quando a gente começa a trilhar esse caminho, que chamamos de
"o caminho de Buda", mas podemos dar o nome que vocês quiserem, talvez
possamos chama-lo de "o caminho correto" a nossa vida começa a mudar e,
quando a nossa vida muda, muda a vida de todos que estão ao nosso redor.
Uma vez Budha vinha andando e viu duas pessoas conversando.
Eles eram dois equilibristas de circo, o mais forte falou para o outro o
seguinte: - Olha, eu vou tomar conta de você, porque enquanto eu estiver tomando
conta de você, você não se desequilibra e cai.
E se você tomar conta de mim, o
mesmo acontece, porque enquanto você tomar conta de mim eu também não me
desequilibro e caio, dessa maneira podemos efetuar várias acrobacias e criarmos
ótimos espetáculos sem que nos machuquemos!
O Budha após pedir licença, disse: -
Não! vocês não estão certos. Quando estiverem treinando as manobras acrobáticas,
você toma conta de você mesmo, disse para o mais forte e, ele, apontando para o
outro, toma conta dele mesmo.
Porque enquanto você estiver tomando conta de você
mesmo, automaticamente você toma conta dele. Quando você consegue resolver o seu
problema, naturalmente você começa resolver o problema dos outros que estão ao
seu redor.
Se você não consegue resolver o seu problema pessoal, como
pretende resolver o dos outros, ajudar aquela outra pessoa? Dar conselhos?
Equilibrar? Impedir que caia? E como é que se faz para ajudar, continuou o Budha
aos equilibristas.
Fazendo exercícios para ficar mais forte, efetuando
alongamentos para ficar mais flexível, fazendo meditação para compreender a vida
como ela é e, não tremer na hora em que estiver oferecendo apoio para o
companheiro. A recíproca é a mesma, o equilibrista de cima também deve se
esforçar para estar equilibrado não só física como mentalmente de modo a não
derrubar o de baixo.
Cara platéia, o que pretendemos com todos esses exemplos?
Desejamos que a nossa vida se transforme, porque quando transformamos nossa
vida, transformamos tudo que está o nosso redor.
Tem um ditado que diz que
quando uma borboleta bate as asas no Amazonas, produz uma onda no Japão! Tudo é
interdependente! Tudo se emaranha, se mistura. Isso gera isso, que gera aquilo,
que vai gerar aquilo outro.
Quando estivemos fazendo alguma coisa, temos que ter
atenção e cuidado porque estamos gerando e produzindo outras coisas. Estas
outras coisas, se não corretas podem causar prejuízos.
Quando damos um passo
para o lado certo, o lado certo dá dois passos para o nosso lado. Quando damos
um passo para o lado errado, o lado errado também dá dois passos para o nosso
lado. Nós podemos decidir para que lado andar. Uma vez dado o passo, seja certo
ou errado, não podemos reclamar do resultado posterior. Caso sua vida seja
recheada de resultados ruins foi porque deu vários passos errados.
O hoje condiciona todo o passado e o futuro vai conter todo o
presente. Se hoje não dermos os passos corretos hoje, agora, neste momento, como
será o nosso amanhã?
Como será o futuro da humanidade, do planeta? Estamos poluindo
os nossos rios e mares, acabando com as nossas florestas, extingüindo os
animais. Somos nós, que estamos fazendo isso, nossa geração! Nesses últimos 40,
50 anos maltratamos demais o planeta em que vivemos, todos nós temos culpa.
Devemos começar a fazer alguma coisa agora porque amanhã não dará mais tempo. O
que pretendemos deixar de herança para os nossos netos?
Neste momento, eu convoco todos os presentes a iniciarem
imediatamente uma reforma interna, tendo como armas à compaixão e como arsenal a
vontade férrea de querer deixar um mundo melhor.
Agradeço a paciência de todos os presentes e, peço que os
méritos conseguidos com essa série de palestras sejam revertidos para todos os
seres que estejam em sofrimento.
Que a infinita bondade e compaixão de todos os Budhas do
passado e do presente recaiam sobre vossas cabeças.
É o que eu tinha a falar.
Obrigado
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