Extraído do livro Musashi, de Eiji
Yoshikawa, romance épico baseado diretamente na história japonesa, que narra um
período da vida do mais famoso samurai de todos os tempos. Trata-se de um
diálogo, entre o monge Zen Takuan e Musashi quando ainda era um aprendiz de samurai.
Esse dialógo foi travado quando o monge consegui prender Musashi numa árvore.
A noite vinha chegando.
Contrastando com a anterior, a lua brilhava branca no céu sem nuvens. Quando todos no
templo se aquietaram
adormecidos, o monge, cansado dos livros, calçou as sandálias e saiu.
-Takezo! - chamou. Um leve frêmito agitou os ramos,
no topo do velho cedro. Gotas de sereno caíram ao seu redor formando uma chuva
tênue e brilhante.
- Pobrezinho, já nem tem forças para responder.
Takezo, ei, Takezo! Na mesma hora, um berro possante se fez ouvir:
- Que quer, monge dos infernos? - Era a voz estrondosa de
Takezo, cujo ânimo nada lograva abater.
- Ora, ora ... - disse o monge, elevando uma vez mais o
olhar. Vejo que ainda não perdeu a voz. Nesse passo, creio que é capaz de durar mais cinco ou seis dias. E então?
Está com fome, Takezo?
- Não me faça perder tempo com conversa fiada, bonzo. Ande
logo, corte minha cabeça de um vez!
- Nada feito, não ouso cortá-la descuidadamente. Do
jeito como você é
atrevido, sua cabeça é capaz de pular e morder meu pescoço, mesmo depois de separada do corpo. Bem,
vamos apreciar o luar.
Takuan sentou-se sobre um pedra próxima.
- Espere aí que já lhe mostro ... Concentrando toda a força do
corpo, Takezo pôs-se a sacudir o galho em que se achava amarrado. Folhas e
fragmentos de casca choveram sobre o rosto de Takuan. O monge os removeu,
limpou os ombros e o peito, e voltou uma vez mais o rosto para o alto:
- Isso, assim é que se faz, gostei de ver! É preciso
sentir raiva, muita
raiva para que realmente venham à tona a verdadeira força e o caráter de uma pessoa. Nestes
últimos tempos, anda na moda rotular de intelectual e magnânimo o indivíduo
imperturbável, que oculta sua raiva. Que jovens se ponham a imitar tal atitude, supostamente adulta,
constitui indizível absurdo. Gente jovem não deve conter a raiva. Tem de
expô-la! Vamos, ranja os dentes, sinta raiva, muita raiva, Takezo!
- Ah, não perde por esperar, bonzo maldito! Eu ainda vou
conseguir desgastar essas cordas e rompê-las, e então aterrisarei ao seu lado e
o materei a pontapés!
- Palavras promissoras! Sinto-me orgulhoso! Até que isso
aconteça, aqui permanecerei,
à espera. Contudo, pense bem: até quando será capaz de agüentar? Sua vida não se terá
acabado muito antes de a corda arrebentar?
- Como é?
- Céus, que força impressionante! Você está conseguindo
balançar até a árvore!
Mas veja a terra: nem se abala, reparou? Sabe por quê? Porque não há força em seu ódio - seu
ódio é pequeno, é privado, tem origem em rancores pessoais. A indignação de um
homem deve ser desprovida de interesses pessoais, devotada à causa pública.
Encolerizar-se levado por mesquinhas emoções pessoais é histeria feminina.
- Continue tagarelando à vontade; já vai ver o que lhe
acontecerá!
- Não adianta, Takezo, desista! Desse jeito, só vai
conseguir consar-se. Por mais que se debata, nunca conseguirá abalar a terra -
nem sequer partir esse galho.
- Maldição!
- Se empregasse toda essa energia a favor, já não diria da
pátria, mas ao menos de terceiros, você conseguiria mover céus e terra, até
mesmo os deuses, sem falar nos simples mortais! Nesse ponto, Takuan passou a
usar o tom que empregava em seus sermões:
- É lamentável, lamentável! Nasceu de humanos, e no
entanto é uma fera: e selvagem como uma fera, sem progredir um passo sequer em
direção à condição
humana, este jovem tão formoso está condenado a terminar seus dias.
- Cale a boca! - gritou Takezo. Lançou na direção do monge
uma cusparada que se pulverizou antes de atingir o solo.
- Agora escute, Takezo, preste atenção: sua força física
tornou-o bastante presunçoso,
não é verdade? Acreditava não haver no mundo ninguém mais forte que você, estou certo ou não? E
agora, que tem a dizer do seu atual estado?
- Você não me derrotou pela força: nada tenho de que me
envergonhar.
- Não importa se fiz uso de expedientes ou de palavras, o
fato é que o derrotei. Prova disso é que, por mais que se mortifique, aqui
estou sentado numa pedra como vencedor e você exibe sua triste figura,
dependurado num galho de árvore. Tem idéia do que provocou esta situação?
- ...
- Se considerarmos apenas a força física, você é mais forte
do que eu, tem toda a razão. Um homem não pode lutar com as mãos limpas contra
um tigre, é claro. Mas um tigre é sempre um tigre, um animal inferior ao homem,
não se esqueça.
- O mesmo se dá com a sua coragem: todas as suas ações,
até agora, demonstraram temeridade, uma falsa coragem que deriva da ignorância.
Não são atos de um ser humano, nada têm a ver com a verdadeira força de um
bushi. O homem, o verdadeiro bravo, teme o que tem de ser temido, poupa e
resguarda a vida - esta pérola preciosa - e procura morrer por uma causa digna.
Percebe agora o que há de tão lamentável em tudo isso? Você veio ao mundo
possuindo força física e firmeza de caráter, mas é inculto - aprendeu apenas o
lado sombrio da arte guerreira, não procurou cultivar a sabedoria e a virtude.
"Aperfeiçoar-se no duplo caminho das letras e das armas" - conhece a
expressão? Mas que significa "duplo caminho"? Sem dúvida não
significa que dois são os caminhos a serem percorridos em busca do aperfeiçoamento; significa,
isto sim, que os dois caminhos, das letras e das armas, estão juntos e perfazem
um único caminho. Compreendeu, Takezo? Calou-se a voz sobre a pedra, nada mais
disse o vulto sob a árvore. A noite permaneceu negra e serena. Por instantes,
reinou o silêncio.
OSS!!! BuGi
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